Entrevista com Mário Raul Campani

Foto em festa de família do dia 12/06/2015.

"O que eu vou te dizer é que hoje eu com meus 80 anos eu vivo melhor do que eu vivia com 50.. essa é verdade..  [...] Tanto é que hoje tu vive mais com menos, talvez, mas com mais significado de vida..  Tu tem como te.. reservar vida, viver.."


Entrevistado: Mário Raul Campani, 80 anos (na época)
Entrevistador: Leonardo Moura Campani
Tema: História de Vida
Local: Porto Alegre/RS
Data: 15/06/2012



L: Para começar, gostaria de saber sobre suas origens, onde tu nasceu, como foi a tua infância?

M: Nascido em Porto Alegre, toda a vida vivida aqui em Porto Alegre, oito desses 80 anos que estou hoje, oito foi morando em Canoas, o resto morando em Porto Alegre... Curso, formado em Porto Alegre, na época existia, hoje não existia mais... Hoje tu faz... técnico.


L: E tua infância como era?

Pão dos Pobres na década de 30.

M: Meu pai faleceu muito cedo, faleceu em 1938, eu tinha sete anos essa hora... Eu vivi oito anos em casa com a mãe e tudo, o pai né, depois que saí dali eu fui para os Pão dos Pobres, onde fiquei mais seis anos, até os quatorze anos eu fiquei no Pão dos Pobres. , naquela época não, era... Integral. Turno integral, turno e returno, e eu ainda fazia parte da banda... tinha banda lá!

O Pão dos Pobres tem hoje escola técnica, naquela época também tinha escola técnica de todas as (profissões)... tipografia... mecânica.. tudo que é formação né.. e eu saí antes para trabalhar né, precisava trabalhar, lá eles não pagavam nada né, é lógico, mas tava tendo vantagem.. mas, não cheguei entrar em curso superior, curso de prática em oficina eu não cheguei a entrar, porque era acima de quatorze anos, eu saí de lá aos quatorze. Hoje pelo que eu sei é semi-aberto até

Clarinete
L: O senhor tocava o que lá? M: Eu tocava Clarinete. E o Kurt tocava pistão, meu irmão, é o único irmão, o Kurt né,  e ele tocava pistão.. Uma banda boa, bem grande.. Bem treinada, não sei se estragaram, terminaram.. O que eu sei do Pão dos Pobres... é que não é mais interno, é semi-interno, tem uma parte que é interna, e outra parte que é semi interno né..  O que não está avaliando realmente a situação deles né.. Sim.. é grande, quatro andares, enorme, tudo nos fundos, não são quartos.. são quartos grandes com vinte, trinta em cada um..
Trompete (também conhecido como pistão).



L: Ah, dormiam todos juntos? M: Dormia tudo junto, cada um guardava sua roupa no bidê do lado. Tinha roupa para guardar e para lavar né.. E acordava cedo? Acordava.. seis horas tava de pé.. E ia para casa nos finais de semana? Não, eu não ia.. Eu saí fora do colégio, duas vezes.. Dos seis anos que eu estive lá, duas vezes eu saí.. Uma que a mãe estava no hospital muito doente.. e me chamaram então para eu ir.. e a outra fui ver o jogo nos eucaliptos ali né.. (risadas).. a turma foi, que ia, que ganhava né, uma turma grande, tinha vinte e trinta que iam no futebol.. naquela vez eu fui sorteado né...  ai eu fui ali na avenida dos eucaliptos! (risadas)... que era o campo do Inter na época né...

Estádio do Eucaliptos foi inaugurado em 1931.

L: E a educação como que era lá, era muito forte? 

M: Não, até que.. razoavelmente, ou seja, era dentro do padrão né, era irmão marista né... irmão lassalista, não marista, lassalista..  Eles que davam as aulas né..   tinha aulas práticas de cada turma né.. era mais por idade, por idade e dificilmente faltava um.. né.. e geralmente ensinava, essa é a verdade, não tem comparação com hoje.. Os professores de hoje.. só querem ver o cifrão, mas ensinar.. tanto é que dentro da prova que foi feita agora né, que a prefeitura fez, mais de 80, quase 90% rodaram! E desses 90% tinha 50% de professor... Sim (Ele estava se referindo ao concurso do magistério de 2012 no qual de aproximadamente 70 mil inscritos apenas 5.500 foram aprovados)   Como é que um elemento desses pode ensinar um.. Ééé.. Ai é que tá né... então fazem aquelas greves que querem ganhar, mas não trabalham!  Que greve o quê... (risadas).. Não dá.. hoje é diferente do que era né.. Naquela época, em 41, que eu saí de lá, eu saí de lá em 1941... não 41, eu saí em 1945, eu saí de lá..  quando terminou a guerra né, segunda grande guerra terminou... Em 1941 teve foi a enchente... Ali do centro.. Ali do centro.. Foi uma correria, saiu na notícia.. Na época eu tava no hospital.. E tinha... operado as amígdalas... E como o pessoal do colégio todo foi para “Os das Dores”.. 
A enchente de 1941, que foi a maior registrada em Porto Alegre deixou 70 mil flagelados sem energia elétrica e água potável, alcançou a cota 4,75 metros com um tempo de recorrência de 370 anos.

Porque no Colégio das Dores não tinha água né, então todo o pessoal menor foi para o “Das Dores”.. E eu tava no salão de recuperação.. era dentro do próprio edifício do pão dos pobres.. Sim.  A sala de recuperação era ali, como.. (trecho incompreensível).   eles me levaram junto de maca e tudo né.. Mas daí.. a vida foi...

L - E da época... da guerra o senhor lembra alguma notícia?

M: Nãooo.. não que eu não cheguei a... Era muito novo.. muito novo. Eu era guri, 1945, 46, em 45 terminou a guerra né, sim,  em 44 e 45 eu tinha o que.. poucos anos, nasci em 31 é só fazer a conta.. Sim, tinha 13, 14 anos.. 13, 14 anos não ia para guerra.. o que eu me lembro é que ali onde é na frente do colégio onde é  hoje, onde é que é a avenida.. da Borges ali.. Borges né, avenida Borges... ali era Guaíba  ainda... sim.. aquilo ali tudo é aterro né..  até nós saíamos de tardezinha, ali tem um portão dos fundos do colégio, abria o portão, saía de tardezinha e tomava banho no Guaíba.. Bá.. Ali dava para tomar banho! (risadas).. Depois encheram de terra ali né, fizeram aterro né...  Até a praça ali foi aterrada né, é um lago artificial na verdade.. É um lago artificial, deixaram a passagem que tinha né..  Só ponte ficou.. É a ponte ficou..  

L: E de trabalho.. do primeiro trabalho, o que o senhor lembra?

M: Trabalho, eu trabalhei muitos anos, ou seja, quase toda minha vida em seguro.. Depois dos vinte anos, eu trabalha interno, eu era técnico, eu sabia a história do seguro todinha, pô, com vinte e vinte e três anos.. daí eu pedi para trabalhar externo, na inspetoria.. sim.. na inspetoria era quem fazia o corretor que fazia os seguros, cansei de  ser técnico né.. e ganhava mais... sim..  E ganhava um automóvel da firma né, então, era uma mão na roda, era o que eu queria! Ai eu fui servir inclusive..  Servi, um ano, militar, exercito né, e fui transferido.. E eu peguei  na companhia de polícia que é ali na.... É na Andradas? Não, ali, naquela época era perto do colégio militar, numa ruazinha, ali que era a companhia de polícia. E eu fui trazido de lá para o QG... Sim... E o meu patrão.. da civil, era cunhado do general que era comandante da região ali.. Bá.. ai eu consegui fácil a transferência.. (risadas).. dizem que foi a última transferência feita naquele ano, foi a minha... E passei pelo seguinte, trabalhava de manhã na firma e chegava às 10 horas no QG, davam, sim, os horários davam para conciliar e ganhava mais né, ganhava dos dois lados eu ganhava.. e quando eu fui receber alta, me ofereceu uma promoção de sargento, que eu era cabo né, me prometeu.. se eu ficasse no exército uma promoção de sargento que dava na hora! Não era para depois né! E eu não quis.. Hoje, vou te ser sincero, foi uma pena não ter ficado.. o quê que eu seria.. aposentado, mas ganhando muito mais que eu ganho hoje.. Sim.. Continuei como inspetor de seguro, comecei na seguradora protetora, a protetora era uma companhia que tinha no centro de Porto Alegre, que os donos eram (trecho incompreensível), e um deles Ciro de Lima brigou com o primo dele que era o diretor na época, por uma dívida que a protetora tinha com o governo federal, o Ciro de Lima na época era da política.. E ele.. como é que eu vou te dizer.. assumiu a divida e foi pedir a cassação da companhia na época.. na época eram tantos mil reais.. não sei se eram cruzeiros..  para época lógico, ai fechou, fechou porque eles quiseram fechar.. de várias firmas ficou um contra o outro e depois foi fechando né..  E ai eu fui viajar, fui à barraca, fiquei lá quase um mês  trabalhando lá, iniciante tinha na direção da companhia a Liquivendas né, a Liquivendas era de um  general né, eu fui trabalhar com ele.. ai ele me pagava bem e em três mês eu paguei tudo que devia! E devia mais.. fiquei três meses sem trabalhar, a firma não pagava, há três meses sem receber salário né.. daí fui viajar para arrumar dinheiro e viajei pela Liquivendas, companhia de automóveis, tinha uma camionete que os cara da companhia lá que emprestavam  né, e foi assim.. Em um mês consegui pagar tudo, a companhia pagava em dia.. Podiam né.. E até hoje em dia existe.. Se não acaba.. as facilidades.. as facilidades que eles tem até hoje, o general ainda tá lá.. Daí me aposentei em 88, não foi antes.. foi com 33 anos de serviço.. em 88.. na época tinha duas aposentadorias porque ganhava pensão, ganhava pensão, quando se aposentasse com 33 anos de serviço essa pensão perdia e passava a ganhar aposentadoria né, foi o que fiz, na época eu ganha pelo INPS (A antiga nomenclatura do Instituto Nacional de Segurança Social, INSS, era Instituto Nacional de Previdência Social, INPS) e ganhava... hoje não pode.. naquela época eu ganhava 9 e meios salários mínimos,   desses 9 e meio salários mínimos, eram mínimos, não eram salários, tá reduzido em quatro salários mínimos!... desvalorizou bastante..  desvalorizou um monte, ou seja, conforme o ano, a diferença do salário mínimo aumenta 30, 44, 22 e esses dois ou três vão para os aposentados anteriores a 88, como é o meu.. Mas graças a deus dá para viver né, tenho apartamento que é meu mesmo, não é aluguel, na época tinha carro, tinha automóvel, não dirijo porque não dá, não tenho condições, tanto é que aluguei, o meu box tá alugado.. Mas tenho uma casa, nem que seja, não devo para ninguém...

L: E antes, tua achava que era mais fácil de se viver do que agora?

M: Não, não era mais fácil de viver não, porque hoje tem mais tecnologia que não se existia antigamente, e a tecnologia hoje.. O povo hoje tem computador, tem televisão em HD, não sei mais o que.. né.. “NET” e outros mais ai, que de fato não existiam há vinte anos atrás não existia nada disso. E tem hoje, é a era da tecnologia.. Telefone celular! Tu nunca ia pensar que ia ter celular.. Eu quando viajava, para Uruguaiana, eu chegava em Uruguaiana, ia para o hotel e pedia uma ligação para Porto Alegre para o dia seguinte, marcava hora, então tu conseguia ligar para Porto Alegre.. Era assim.. Hoje não, quem tiver no meio do mato pega o celular e fala e ponto, te comunica.. Até telefone fixo era difícil, era muito difícil para adquirir, eu comprei em prestação e ai conseguia né, levou o que.. uns cinco anos para instalar!  Era assim né! Fazer o que, era assim né.. Hoje não, hoje tu tem tudo, telefone tu tem a hora que tu quer o telefone.. Leva.. em 48 horas tu instala o telefone.. Celular de dois em dois meses tá mudando o sistema de celular, mais moderno, tem música, máquina fotográfica, celular que fala, tem tudo que naquela época não tinha.. Não tinha nada, pedia para morrer! (risadas) É! .. A tecnologia existe hoje, mas não existia naquela época..

L: Quais eram as formas de lazer, entretenimento que senhor utilizava com vinte e trinta anos?

Cine Victória no final dos anos 50.
M: Era.. Cinema, era só o que tinha! Não existia televisão, nem se pensava em ter! Né.. Rádio, era aquele rádio que tocava aquelas músicas da rádio.. telefone nem se pensava em ter.. Fora tudo isso acumulado é muito melhor hoje,  não precisa sair para buscar alguma coisa, tu telefona eles te trazem em casa, não existia, naquela época.. quando eu casei inclusive, em cinqüenta e quatro.. antes de cinqüenta e quatro meu sogro trabalhava em supermercado.. tinha a Campal,  um supermercado igual ao “Big”, mas era do Estado, do estado a Campal.. Na Campal tu fazia o rancho e agente tinha que levar em casa se não ninguém levava..Eu ia no sogro, ia lá, fazia o rancho e levava.. Hoje em dia não.. pega um taxi, ou tem um carro,  ou liga eles trazem em casa.. Facilita a acessibilidade.. Ah! Facilita.. Hoje tu vive melhor.. né.. o que eu vou te dizer é que hoje eu com meus 80 anos eu vivo melhor do que eu vivia com 50.. essa é verdade..  ganhava mais.. ganhava bem, mas não tinha esse conforto, não tinha.. com o dinheiro não comprava nada!  Não tinha TV, não tinha telefone, não tinha televisão, não tinha rádio.. era difícil de tu conseguir um rádio na época por causa da guerra.. antes de 54,  45 quer dizer.. antes de 45.. e eu não tinha condições de comprar o rádio, era difícil, existia uma loja, meia dúzia de loja que vendiam rádio e tu tinha que ir na polícia registrar o rádio.. para não transmitir notícia do estrangeiro na época da guerra né.. Sim.. Porque o rádio  a sintonia era alta né, era só à vela, hoje é trocinho pequeninho que tem um transistorzinho.. antes era uma vela grande que se botava em rádio e televisão.. A televisão também, funcionava como o rádio a bobina.. Hoje em dia é computador.. é chip.. Aquilo ali tu pode ter quando quiser, mas naquela época não existia, lógico.. Tanto é que hoje tu vive mais com menos, talvez, mas com mais significado de vida..  Tu tem como te.. reservar vida, viver.. Hoje tu sai para o shopping Center e vai em tudo que é loja e se diverte ainda, tem cinema, tem banco, coisa que não existia antigamente, pelo menos não existia isso né.. Mais alguma coisa?

Comentários

  1. Obrigado Leonardo pela homenagem ao meu pai, falecido dia 12 deste mês. Como você mesmo disse, um exemplo de resiliência!

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